segunda-feira, 24 de maio de 2010

Somos analfabetos?

O senhor Breton acreditava que a realidade era complicada devido aos analfabetos estarem sempre a perguntar, frente a uma frase escrita: o que é que isto quer dizer? *

Há dias, pouco antes do jantar, tropecei numa estranha reportagem sobre a estranha vida de algumas pessoas numa estranha instituição: o Hospital Júlio de Matos, ou, mais vulgarmente apelidado de “Hospital dos Malucos”. Ou, como agora se chama, “Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa” – parece que agora é mais chique chamar “Centro” ou “Central” a qualquer instituição ou serviço. (Dá-lhe importância, acho eu.)

Pense o leitor, por um instante. Não naquela coisa do centro, que daria mais que falar do que pensar. Pense o leitor, portanto, por um instante, que tinha de visitar aquela instituição, digamos, por exemplo, por uma tarde. Que ideias lhe atravessam o espírito?

A. « Sim, por que não? Deve ser uma experiência enriquecedora, conhecer as histórias das pessoas que lá estão, entrar um pouco no seu mundo e tentar percebê-lo, ...»
Hum..., talvez seja muito atrevimento da minha parte, ou cinismo, ou até pessimismo: quem é que tinha coragem para passar lá duas horitas que fosse?

B. « Por que raio iria eu agora até ao Júlio de Matos?! Não tenho lá nenhum familiar, não trabalho naquela área nem tenho nenhum interesse em particular, ...»
C. «Não sei se teria coragem para entrar num sítio daqueles, ...»

De facto, com a vida que nos vai levando nos dias que correm, uma visita àquele sítio seria quase irracional. Mas, por outro lado, já que seria irracional, estaríamos no sítio certo...
E se nos internassem?
E se ficássemos num estado intermitente entre a loucura e a sanidade, sem que nunca ninguém acreditasse em nós quando disséssemos “Eu não estou maluco!”?
E se perdessemos o contacto com o mundo cá fora durante os melhores vinte anos da nossa vida? E se ficássemos todos os dias à porta, à espera de uma visita que nunca mais chegasse?
E se aquele sítio, com aquelas pessoas vestidas de branco e as outras, se tornassem o nosso mundo, a nossa família, o nosso presente e futuro, aquele em que estaríamos perfeitamente encaixados, e tudo o resto deixasse de ter importância?
E se, depois, todo esse nosso mundo terminasse quando o Hospital deixasse de ser Hospital, para onde iríamos? O que faríamos?

O que é que isto quer dizer?

São as perguntas complicadas que complicam a realidade. Sem perguntas a realidade seria simples – pensava o senhor Breton. *
Mas a realidade não bastava, faltava a outra metade: a reflexão. *

E a reflexão, essa, deixo-a a cargo do leitor.

* Transcrições de O Senhor Breton e a entrevista, de Gonçalo M. Tavares

1 comentário:

antónio disse...

Excelente estreia de mais uma colaboradora. O blog está mais rico...

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